Nem tudo que se vive é dito. Há experiências, dores, vergonhas e segredos que ficam guardados, não por acaso, mas como defesa. Na psicanálise, sabemos que aquilo que não é simbolizado — aquilo que não ganha palavra — não desaparece: ele se inscreve no inconsciente e encontra outras vias para se manifestar. É assim que a omissão, mais do que um ato, pode se tornar herança psíquica.
Freud já falava sobre a transmissão transgeracional de conteúdos inconscientes, e autores posteriores, como Nicolas Abraham e Maria Torok, aprofundaram a ideia de que segredos familiares podem criar “criptas” no psiquismo — lugares onde algo é guardado, isolado, mas não resolvido. Esse “não-dito” atua silenciosamente, influenciando comportamentos, afetos e escolhas, mesmo que os descendentes não tenham consciência do que ocorreu.
Quando um trauma não é narrado, a geração seguinte pode senti-lo de forma difusa, como um peso sem nome. Sintomas, ansiedades, repetições e até escolhas de vida podem carregar o eco de algo que nunca foi explicitado. A omissão se transmite não apenas pelo que é calado, mas pela forma como se olha (ou não se olha) para certos temas, pelo que é evitado nas conversas, pelas reações desproporcionais diante de assuntos específicos.
Esse tipo de transmissão não acontece por genes, mas pelo laço: a criança percebe, mesmo sem palavras, que há zonas interditadas na história da família. E, muitas vezes, internaliza também a necessidade de proteger esse silêncio, perpetuando-o. Assim, o que começou como defesa de um sofrimento individual pode se transformar em padrão coletivo, atravessando décadas.
O trabalho psicanalítico diante dessas heranças é justamente abrir espaço para o que foi omitido. Não para expor segredos como se fossem curiosidade, mas para que aquilo que estava preso no silêncio possa ganhar forma e sentido. É na possibilidade de nomear — mesmo que parcialmente — que a cadeia da repetição pode ser interrompida.
Porque o silêncio, quando sustentado por gerações, não deixa de falar. Ele fala através dos sintomas, das escolhas e dos destinos. A clínica, ao escutá-lo, pode transformar o não-dito em palavra, e a herança invisível em história elaborada.
Associados I.C.P.B.