Como a vergonha molda a identidade: um olhar psicanalítico

A vergonha é uma emoção silenciosa, mas poderosa. Ela surge no encontro com o olhar do outro — real ou imaginário — e revela ao sujeito a própria vulnerabilidade. Do ponto de vista psicanalítico, a vergonha não é apenas um sentimento passageiro, mas um afeto estruturante, capaz de marcar profundamente a constituição da identidade.

Freud já indicava que o eu se forma a partir da relação com o outro e com suas expectativas. No estádio do espelho descrito por Lacan, o sujeito se reconhece numa imagem e, simultaneamente, se aliena nela, pois esse reconhecimento está mediado pelo olhar alheio. A vergonha aparece justamente quando essa imagem idealizada de si é ameaçada — quando algo que se queria esconder é exposto, quando se revela uma falta que se queria negar.

Na infância, a vergonha cumpre um papel organizador: ajuda a criança a diferenciar o que é íntimo do que é público, o que pode ou não ser mostrado. Mas, quando excessiva, pode cristalizar-se em uma ferida narcísica, levando o sujeito a moldar sua identidade não a partir do próprio desejo, mas da tentativa constante de evitar a exposição. Assim, a vida passa a ser guiada por defesas: calar-se, esconder-se, construir máscaras que protejam do risco de “ser visto demais”.

A vergonha, nesse sentido, pode tanto restringir quanto impulsionar. Em sua vertente mais paralisante, ela aprisiona o sujeito num ideal inatingível e o afasta de experiências autênticas. Mas, quando simbolizada e atravessada, pode se transformar em motor de elaboração, ajudando o sujeito a reconhecer limites, aceitar fragilidades e construir uma identidade mais condizente com sua verdade.

A clínica psicanalítica oferece espaço para que a vergonha possa ser dita — ou, ao menos, sustentada na presença do outro sem o peso do julgamento. É nesse espaço que o sujeito pode arriscar-se a mostrar o que, durante toda a vida, tentou esconder. E, ao fazê-lo, descobrir que ser visto não precisa significar ser condenado.

Afinal, é no atravessamento da vergonha que o eu pode encontrar não apenas um espelho, mas um reflexo mais humano de si mesmo.

 

Associados I.C.P.B.

     

Política de privacidade

Termos de uso ICPB

www.icpb.com.br

Todos os direitos reservados 2023-2024