O mal-estar na civilização revisitado: ainda somos assombrados pelo mesmo incômodo?

Em 1930, Freud publicou O mal-estar na civilização, um texto em que examinava os conflitos entre o desejo individual e as exigências da vida em sociedade. Décadas depois, o título permanece inquietantemente atual. Afinal, o que mudou desde então? Ou melhor: por que o mal-estar persiste — e talvez tenha se intensificado?

Para Freud, a civilização exige renúncia. A convivência social impõe limites aos impulsos — sobretudo à agressividade e à sexualidade — em nome da ordem, da segurança e do progresso. O preço dessa contenção é a culpa, uma culpa difusa, internalizada, que se torna fonte de sofrimento psíquico. O supereu, instância moral do aparelho psíquico, vigia e cobra incessantemente o eu, mesmo quando ele obedece às normas.

No mundo contemporâneo, esse conflito freudiano ganha novas roupagens. Em vez de renunciar aos prazeres, somos incentivados a buscá-los a todo custo. A lógica atual — alimentada pelo capitalismo, pelas redes sociais e pelo culto à performance — estimula o gozo ilimitado, a constante superação de si, a felicidade como obrigação. Mas, paradoxalmente, quanto mais se promete prazer, mais se intensifica o mal-estar.

O supereu hoje não apenas proíbe: ele manda gozar. Manda ser feliz, produtivo, desejável, disponível — o tempo todo. Essa cobrança contínua cria sujeitos exaustos, angustiados, incapazes de lidar com a falta, com o limite e com o silêncio. A angústia, que antes era fruto da repressão, agora emerge do excesso.

Além disso, vivemos uma crise simbólica. As referências tradicionais — família, religião, instituições — estão abaladas, e o sujeito se vê diante de uma liberdade angustiante, sem bússola para orientar seu desejo. A promessa de autonomia esconde um sujeito desamparado, pressionado por ideais inalcançáveis de felicidade e sucesso.

Revisitar O mal-estar na civilização é, portanto, compreender que o sofrimento psíquico não é um desvio individual, mas uma resposta subjetiva às contradições da cultura. A psicanálise, ao invés de apagar o mal-estar, propõe escutá-lo — porque é justamente na fricção entre desejo e lei que o sujeito se constitui. Não há civilização sem mal-estar, mas há modos mais ou menos humanizados de habitá-lo.

 

Associados I.C.P.B.

     

Política de privacidade

Termos de uso ICPB

www.icpb.com.br

Todos os direitos reservados 2023-2024